Opisanie Swiata – Veronica Stigger


Um romance-colagem

Opisanie Swiata

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O livro Opisanie Swiata, de Veronica Stigger, 3º lugar no 58º Prêmio Jabuti,  nos puxa para dentro de uma história permeada de non sense, fatalidade e simbologias nem sempre decifráveis.

Impossível não citar a edição primorosa da Cosac Naify. Trata-se de um livro lindo, com cores e tipografia que fisgam e não são mero enfeite, mas fazem parte da forma de contar a história. O livro todo é permeado de imagens antigas que vão de fotografias em sépia a recortes de jornais e anúncios comerciais que se poderia encontrar no caso de refazermos o trajeto percorrido pelas personagens.

Impressões de Leitura

Através da curiosidade que se instala na leitura da primeira página – um carta ditada por Natanael ao seu médico e endereçada a seu pai, que, logo se descobre, desconhecia sua existência – nos embrenhamos por Opisanie Swiata, intrigados com o que possa significar esse título impronunciável.

Mas, logo depois do mergulho inicial, as vezes o ritmo de leitura se quebra, como acontece com a personagem Opalka em uma viagem de trem – ele tenta ler, mas o que acontece ao redor o distrai. As coisas narradas por Veronica algumas vezes me distraíram também – o que, vendo na perspectiva pós leitura, é um efeito e uma relação interessante entre o conteúdo e leitor.

A personagem principal não é Opalka, ainda que toda a narrativa se concentre entre a emissão da carta para ele e a viagem – da Polônia ao Brasil – para conhecer seu filho doente. Até o fim da narrativa não se descobre muita coisa sobre a vida de Opalka. Suas atitudes são contidas, às raias da apatia, em alguns momentos

O humor está presente em vários trechos – alguns deles divertiram-me, outros me deixaram na borda do non sense de um jeito incômodo. Ao ruminar esses trechos pós leitura do livro, passei a encará-los de outro modo, mas alguns realmente não me convenceram. Há que esclarecer que tenho mesmo uma certa resistência com o non sense em si, que quase sempre me soa artificioso, sem função real na trama ou estrutura. Não é o caso aqui, como se decifrará adiante.

As mulheres só aparecem na narrativa como uma espécie de miragem ou figuras quase espectrais e indecifráveis. Nenhuma tem força ou protagonismo, o que está em alguma medida conectado ao esboço de romance que Opalka descobre no caderno de notas de Natanael – ele desejava escrever a história sobre um homem só, na qual não apareceria nenhuma mulher. No livro de Veronica há mulheres, mas elas só existem / funcionam a partir das reações que despertam nas personagens principais – Bopp, Natanael e Opalka. A mãe de Natanael, por exemplo, é apenas uma ponte entre ele e o pai. Priscila surge em diferentes momentos da história como uma figura que parece ter algo a contar, mas em seguida some e depois ressurge sem explicação aparente durante uma viagem de navio, justo no ponto simbólico de transição entre os hemisférios (o que me lembrou O Sul, de Borges), as outras personagens femininas que aparecem como companheiras de viagem de Bopp e Opalka são vistas apenas como as libertinas dissimuladas ou as que invejam as libertinas.  A única personagem feminina com algum brilho, o da alegria e energia vital, é uma criança que surge com seus irmãos e uma cadela chamada Margarida sem que se saiba quem são seus pais.

Ampliando a leitura

Como disse antes, depois da leitura consegui olhar para os momentos non sense de outro modo, mas as mudanças de perspectiva não vieram apenas da reflexão solitária pós-leitura. Depois da discussão da obra no Clube de Leitura Leia Mulheres – POA, além de desvendar muitas referências a partir do conhecimento partilhado por outras leitoras, acabei me embrenhando em pesquisas sobre as referências que Veronica faz a outros livros, autores, figuras que há no livro.

Quando estas referências foram, ainda que parcialmente, decifradas e compreendidas, a percepção da obra mudou e outras perspectivas se apresentaram, me fazendo mais satisfeita com a leitura.

Destaco especialmente a referência a uma poesia de Drummond incorporada de modo lúdico no livro.

O Elefante
Carlos Drummond de Andrade

Fabrico um elefante
de meus poucos recursos.
Um tanto de madeira
tirado a velhos móveis
talvez lhe dê apoio.
E o encho de algodão,
de paina, de doçura.
A cola vai fixar
suas orelhas pensas.
A tromba se enovela,
é a parte mais feliz
de sua arquitetura.

Mas há também as presas,
dessa matéria pura
que não sei figurar.
Tão alva essa riqueza
a espojar-se nos circos
sem perda ou corrupção.
E há por fim os olhos,
onde se deposita
a parte do elefante
mais fluida e permanente,
alheia a toda fraude.

Eis o meu pobre elefante
pronto para sair
à procura de amigos
num mundo enfastiado
que já não crê em bichos
e duvida das coisas.
Ei-lo, massa imponente
e frágil, que se abana
e move lentamente
a pele costurada
onde há flores de pano
e nuvens, alusões
a um mundo mais poético
onde o amor reagrupa
as formas naturais.

Vai o meu elefante
pela rua povoada,
mas não o querem ver
nem mesmo para rir
da cauda que ameaça
deixá-lo ir sozinho.

É todo graça, embora
as pernas não ajudem
e seu ventre balofo
se arrisque a desabar
ao mais leve empurrão.
Mostra com elegância
sua mínima vida,
e não há cidade
alma que se disponha
a recolher em si
desse corpo sensível
a fugitiva imagem,
o passo desastrado
mas faminto e tocante.

Mas faminto de seres
e situações patéticas,
de encontros ao luar
no mais profundo oceano,
sob a raiz das árvores
ou no seio das conchas,
de luzes que não cegam
e brilham através
dos troncos mais espessos.
Esse passo que vai
sem esmagar as plantas
no campo de batalha,
à procura de sítios,
segredos, episódios
não contados em livro,
de que apenas o vento,
as folhas, a formiga
reconhecem o talhe,
mas que os homens ignoram,
pois só ousam mostrar-se
sob a paz das cortinas
à pálpebra cerrada.

E já tarde da noite
volta meu elefante,
mas volta fatigado,
as patas vacilantes
se desmancham no pó.
Ele não encontrou
o de que carecia,
o de que carecemos,
eu e meu elefante,
em que amo disfarçar-me.
Exausto de pesquisa,
caiu-lhe o vasto engenho
como simples papel.
A cola se dissolve
e todo o seu conteúdo
de perdão, de carícia,
de pluma, de algodão,
jorra sobre o tapete,
qual mito desmontado.
Amanhã recomeço.

Carlos Drummond de Andrade
(Em A Rosa do Povo)

Para quem vai viajar

Acho que vale a pena comentar que esse livro exige do leitor alguma bagagem. Isso não significa que para aproveitar a leitura é preciso vasta erudição, mas há o risco de se ficar um pouco perdido em muitos trechos se não houver elementos para linkar situações ou símbolos do texto com as obras ou figuras que Veronica quis explorar, homenagear ou dissecar.

Certamente é um livro que vai fisgar mais facilmente o leitor que tem  alguma intimidade com o modernismo, mas também é perfeitamente viável entrar na viagem da leitura sem nenhuma bagagem, e se houver disposição para seguir as pistas deixadas no texto, nas imagens e no subtexto, a experiência poderá ser um verdadeiro desenterro de tesouros.  Janelas com vistas incríveis podem ser abertas para o leitor que abra as páginas de Opisanie Swiata.


Sobre Maurem Kayna

Maurem Kayna é Engenheira Florestal, baila flamenco e é apaixonada pela palavra como matéria-prima para a vida. Escreve contos, análises sobre a auto publicação e tem a pretensão de criar parágrafos perenes.

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