Um conto sobre o acaso e a covardia 1


Mormaço

Corre mal a semana – tão poucas vendas concretizadas transformam a ameaça do desemprego em uma presença permanente, como se houvesse alguém ocupando o banco do carona.  Mas ainda restam duas cidadezinhas no roteiro e até o final do dia a sorte talvez seja mais simpática com ele.

A paisagem do interior, verde e quieta, não resolve nenhum problema concreto, mas ameniza tudo que desbota o ânimo. Paulo gosta de dirigir, e lhe agrada a vida itinerante, o contato com os donos de bares e pequenos mercadinhos. Gente de quem sorve histórias, com quem divide anedotas e consegue rir como se não tivesse pensamentos escuros. Na estrada, vai ensaiando os argumentos para convencer seus clientes e faz a contagem regressiva da distância a percorrer até o próximo estabelecimento. Mas os tempos andam difíceis e os produtos que representa não são fáceis de vender como os gêneros alimentícios. A bebida sempre tem saída, mas em épocas de crise, especialmente naquelas cidades marcadas por hábitos religiosos mais restritivos, acaba vendendo menos.

Para afugentar a ansiedade e a sonolência ele desiste do ar condicionado e abre a janela, acreditando nos poderes que tem o barulho do vento para dissipar, se preciso, até o medo. Faltam ainda quinze quilômetros.

Quando deixa atrás de si o asfalto para enfrentar os paralelepípedos e depois o chão batido, vê uma sombra atravessar o caminho que o automóvel percorre, cada vez menos rápido, respeitando os buracos e a poeira. O animal veloz estampou-se no vidro durante o breve tempo em que seu voo cruzou com o movimento do carro, deixando uma impressão forte incrustada nos pensamentos afetados pelo calor do meio-dia. Olhou para o céu procurando o animal, mas restava apenas o azul, a mesma tonalidade que o escoltou até o boteco à beira do rio.

Desce já com o bloco em punho, pronto para registrar os pedidos e não dá chances ao dono da casa para justificar prorrogações. O tempo está bom seu Dante, pode lotar o estoque porque essa semana o senhor vai faturar.

Seja para livrar-se do excesso de sorriso e conversa ou por acreditar nas boas previsões, o homem assente. Mas cobra que ele pare ali na volta, para aproveitar a programação da noite. Vai ter um cantador bom aqui, e não precisa se preocupar porque sua esposa nunca ficará sabendo. O dono do bar argumenta que naquele fim de mundo as fofocas não chegam a alcançar a rodovia de acesso. E pode ficar tranquilo, seu Paulo, que temos bom chuveiro para tirar a poeira do corpo, assim o senhor não faz feio e se sente renovado pra noitada. Satisfeito com a venda, o vendedor agradece e fez promessa de se preparar para ficar na próxima visita, fingindo medo de ser descoberto pela mulher.

Paulo sai do boteco sentindo o pó entranhado nos cabelos e na roupa, curtido de caminho, mas quase sorrindo. Esbarra a mão no capô do carro – quase queima – e assume o volante com ímpeto novo para enfrentar a estrada de chão até o último cliente. Quando dá a partida lembra-se da sombra rápida que desafiou o carro e a sua sonolência. Que tipo de pássaro seria aquele? Paulo não conhece as aves da região, só teve contato com canários engaiolados que seu tio criava, mas era ainda criança. Agora, homem convictamente urbano, ignora as variações de tamanho, canto e plumagem, mas cogita interessar-se por aves – seria um bom passatempo, pensa.

Paulo não tem pressa, mas está ansioso para dar conta do último compromisso, depositando nele a expectativa de afugentar de vez a má fase. O jantar que lhe espera no retorno não desperta apetite, só o enfado com o tanto de chão e asfalto a enfrentar e também com o esforço para se mostrar apresentável na casa dos sogros.

Esta será a última vez do faz-de-conta que tudo vai bem na vida dele e de Alice, promete a si mesmo. Dessa vez aceitou a chantagem da esposa para não turvar as bodas do casal por quem nutre uma admiração honesta, mas tinha deixado muito claro que ela seria sua ex-mulher até o final do ano.

Avança na estrada e volta a pensar no pássaro, como uma distração para vencer a monotonia do trecho final, e imagina como seria se pudesse falar com o animal. Não há gente que conversa com plantas? Lembra de ter lido alguma pesquisa afirmando o benefício do convívio com bichos de estimação para a saúde. Então, parece-lhe legítimo conversar com uma ave, aquela mancha-movimento na sua rota, como criança que dialoga com seus amigos inventados.

Talvez pudesse receber do pássaro um bom conselho, pensa e aproveita para rir de si mesmo – um ótimo remédio, dizem. O vidro baixado faz voar os papéis no banco ao seu lado e ele tem trabalho para evitar sua fuga, colocando a pasta de couro falso sobre as folhas soltas. Os solavancos dificultam sua tentativa de organizar o material e à medida que avança em direção à cidadezinha, onde sequer o esperam, os buracos ficam mais frequentes.

Faltam ainda uns quarenta minutos para chegar ao destino quando outra ave cruza o céu e repete a sombra sobre o pára-brisa. Paulo não sabe do comportamento das espécies para julgar se podia ou não ser o mesmo animal de antes, mas como está entregue aos próprios devaneios, decide que sim e tenta acompanhar seu percurso no intervalo entre uma nuvem e outra. Mas antes de ver a ponta da asa (imóvel porque a ave aproveitava as correntes de ar) alcançar o esbranquiçado que imitava uma copa de árvore, um estrondo desestabiliza o carro. Mais uma irregularidade do terreno, acredita, como uma lombada dessas utilizadas para reduzir a velocidade ou uma pedra muito grande. Para o carro para verificar se há algum tipo de avaria, mas confronta-se com outro tipo de obstácul.

Está suja da poeira da estrada, mas não se vê mais que isso na roupa. Nada de sangue, nenhuma fratura exposta, e nenhum som também. Sem saber se grita por socorro para si ou para a mulher caída à margem da estrada, Paulo a cerca, tentando reconhecer respiração, gemido ou ao menos um olhar, mas o rosto está emborcado na grama. É miúda a moça, cuja idade não afirmaria, mas se arriscasse um palpite, caberia como sua filha.

Não pensa mais no pássaro, que já plana longe e avista a estrada apenas como um traço inútil margeando o rio onde está a presa à qual se dirigem suas garras precisas.

Telefones não alcançam aquele final de mundo e pelo que recorda não há nenhuma casa até a entrada do povoado. Misturam-se nele os temores dos quais costuma se esquivar – especialmente o desemprego e as reações de Alice – e ainda esse susto novo. Não consegue saber se a necessidade mais honesta em suas entranhas é uma ambulância para atender a moça ou um banho para lavar-lhe da vida mal digerida.

Paulo se desconhece e transpira. Sempre se viu como um homem medíocre, mas não inescrupuloso. Agora, age mecanicamente, como já vira em filmes, verificando a existência de alguma marca do próprio veículo no corpo inerte, turvo de terra. O resultado da inspeção coloca poucas gotas de calma na sua boca sem saliva.

A recepção dos sogros atrasou, o suficiente para que ele e Alice cheguem a tempo e ele possa fazer o discurso de homenagem. No calor das comemorações, Paulo se vê sem saída e renova aos velhos zelosos as promessas de cuidar da sua filha mais nova. Gosta deles, por todo o carinho com que o receberam na família, porque são gente boa, e, afinal, nada tem a ver com os conflitos do cotidiano entre ele e Alice. Enquanto os abraça, vê determinação de separar-se esfarelando dentro dele como acontece à massa dos pastéis de santa clara ao serem mordidos.

Paulo recusa a refeição, alegando ter comido algo que não lhe fizera bem em suas andanças pelo interior e um parente abastado, comovido com o clima da festa, pergunta se ele não prefere largar aquele trabalho e assumir um cargo administrativo em sua empresa.

Apesar da dor de cabeça e da náusea, Paulo se mostra amável com a família de Alice, embora quase não fale com ela. Ao chegarem em casa, ele conserva-se calado e segue direto para o chuveiro, já antecipando o alívio de não percorrer mais ruelas esburacadas ou insistir com comerciantes modestos para vender o tipo de produto que ele não consumiria. Para apagar os flashes do pássaro e do corpo imóvel que ainda ardem nos olhos recorre aos soníferos da esposa, que não se preocupa em saber os motivos daquele silêncio ao qual  já está se habituando.

Conto originalmente publicado na Revista O Viés.

 


Sobre Maurem Kayna

Maurem Kayna é Engenheira Florestal, baila flamenco e é apaixonada pela palavra como matéria-prima para a vida. Escreve contos, análises sobre a auto publicação e tem a pretensão de criar parágrafos perenes.

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Um pensamento em “Um conto sobre o acaso e a covardia

  • Renê Oliveira

    Maurem,

    Foi um prazer conhecer seus textos. Você escreve bem e, sem dúvida, consegue fazer imergir. E o principal, não deixa o leitor colocar a cabeça pra fora antes do tempo.

    Parabéns!